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Entre a Angústia e o Medo: Reflexões Psicanalíticas sobre Inquietude, Abandono e Perda

  • Foto do escritor: Josiane Batista
    Josiane Batista
  • 28 de ago.
  • 5 min de leitura

Um olhar sob a luz da psicanálise sobre as experiências emocionais que nos atravessam

28 de agosto de 2028 – Josiane Batista


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A vida humana é atravessada por experiências emocionais tão intensas quanto ambíguas. Entre elas, a angústia, a inquietude, o sentimento de abandono e o medo da perda ocupam um lugar central, moldando subjetividades, vínculos e a própria maneira de ser no mundo. Na perspectiva psicanalítica, essas vivências não são apenas sintomas a serem eliminados, mas caminhos por onde podemos acessar as profundezas do inconsciente, abrindo espaço para reflexão, autoconhecimento e, quem sabe, alguma elaboração.


Angústia: o sentimento indefinível que nos habita

A angústia é, talvez, uma das experiências mais fundamentais e enigmáticas do existir. A psicanálise, desde Freud, reconhece que a angústia não equivale ao medo. Ao contrário do medo, que se dirige a um objeto externo, identificável e concreto, a angústia emerge como algo difuso, sem rosto, que se instala no corpo e na alma como um prelúdio silencioso de algo que não pode ser dito.

Freud, em “Inibição, sintoma e angústia”, descreve a angústia como a resposta do sujeito diante de um perigo interno, uma ameaça de perda de algo vital, que nem sempre é possível nomear. Lacan, por sua vez, enfatiza que a angústia é o único afeto que não engana, pois revela a verdade do desejo e põe em xeque todas as defesas do Eu. Mais do que um sintoma, a angústia é um sinal de que algo no sujeito está em jogo: um encontro com o vazio, com a falta, com o real que escapa à simbolização.

A angústia, assim, é o sentimento que nos liga à nossa própria existência, à incerteza do ser, ao horizonte do desconhecido. Não há quem não a experimente, em algum momento, como uma estranha familiaridade — uma inquietação que pulsa, ora como leve incômodo, ora como sufoco, colocando-nos frente a frente com nossos limites e nossas possibilidades.


Inquietude: a mobilidade do desejo

Se a angústia é o sinal de algo fundamentalmente indizível, a inquietude, por sua vez, é o movimento que nos impulsiona. Somos seres inquietos: buscamos, ansiamos, experimentamos o incômodo da falta como motor do desejo. A inquietude é filha da incompletude que nos constitui, é a faísca que nos faz levantar da cama, questionar certezas, desejar o outro, o novo, o ainda não alcançado.

Na clínica psicanalítica, a inquietude pode ser lida como manifestação do desejo em sua forma mais vital — quando não se torna sintoma paralisante, ela aponta para a criatividade e para a capacidade de reinventar-se. No entanto, ao não encontrar espaço de escuta ou simbolização, a inquietude pode transformar-se em ansiedade ou mesmo desespero, indicando uma tentativa de preencher o vazio existencial a qualquer custo.

Na sociedade contemporânea, marcada pelo excesso de estímulos e pela busca incessante de satisfação, a inquietude é frequentemente vivida como angústia intolerável. O vazio é visto como falha, a pausa como ameaça, e a urgência de preencher todos os espaços faz com que muitos percam contato com a própria interioridade. A psicanálise, ao contrário, propõe que o vazio seja habitado, reconhecido em sua potência criadora.


Abandono: a marca fundante do sujeito

O sentimento de abandono é, talvez, uma das experiências mais primitivas e universais. Desde o nascimento, o ser humano depende radicalmente do outro para sobreviver — é na relação com o cuidador que o bebê experimenta, pela primeira vez, a presença e a ausência. O abandono, nesse sentido, não diz respeito apenas à falta física, mas à ausência simbólica: àqueles momentos em que o olhar, o gesto, a palavra do outro não vêm em socorro.

A psicanálise nos ensina que o abandono está na origem do desejo. É justamente porque algo do outro sempre falta, porque a presença nunca é plena, que o desejo nasce e se perpetua. O sentimento de abandono, então, pode se transformar em busca, em projeto, em laço; mas pode também se cristalizar em sofrimento, em repetição de faltas, em medo paralisante.

Na clínica, os relatos de abandono costumam trazer à tona antigas feridas, cujas cicatrizes se manifestam nas relações adultas: o medo de ser deixado, a angústia diante da separação, as tentativas de controle sobre o outro. São defesas construídas para evitar a dor psíquica, mas que, paradoxalmente, podem conduzir a novos abandonos. O trabalho psicanalítico, nesse contexto, é oferecer ao sujeito um lugar de escuta onde a ausência possa ser elaborada, e não apenas negada ou evitada.


Medo da perda: o preço dos vínculos

Na base da angústia e do abandono está o medo da perda. Amar alguém, desejar algo, implicam sempre o risco de perder — e é justamente esse risco que confere densidade aos vínculos e intensidade aos afetos. O medo da perda é o avesso do desejo: se, por um lado, aspiramos à conexão, por outro tememos a separação, o desamparo, o fim.

Esse medo pode se manifestar de diversas formas: ciúmes, possessividade, ansiedade antecipatória, busca de garantias impossíveis. Às vezes, leva à recusa do próprio laço, como se evitar se entregar fosse suficiente para evitar sofrer. Outras vezes, conduz à dependência, à idealização do objeto amado, à ilusão de completude.

A psicanálise convida a olhar para o medo da perda não como algo a ser extirpado, mas como parte inevitável da experiência de viver e de desejar. Atravessar esse medo é aceitar a impermanência — e, a partir daí, construir laços mais livres, menos marcados pela exigência de controle ou de simbiose.


Refletindo para além do sintoma

Pensar a angústia, a inquietude, o abandono e o medo da perda à luz da psicanálise é, sobretudo, reconhecer o humano em sua vulnerabilidade. Não se trata de buscar soluções fáceis ou estratégias de eliminação do sofrimento, mas de oferecer espaço para que esses afetos encontrem palavra, sentido, simbolização.

No espaço analítico, escutar a angústia é permitir que ela se expresse, que revele seu significado singular. Cada sujeito constrói, a seu modo, saídas para o vazio: alguns criam, outros adoecem, alguns se lançam em novas experiências, outros se retraem. A psicanálise aposta na potência do sujeito de reinventar-se a partir de suas faltas, de transformar o sofrimento em possibilidade.


Considerações finais

Vivemos tempos em que a angústia e a inquietude parecem se intensificar, potencializadas por um mundo veloz, incerto e muitas vezes hostil ao silêncio e à introspecção. Mais do que nunca, é fundamental resgatar o valor da escuta sensível, do tempo de elaboração, da aceitação da falta como constitutiva do ser.

Abandono, medo da perda, angústia e inquietude não são apenas palavras, mas vivências concretas, enraizadas na experiência de cada um. Ao lançarmos luz sobre esses afetos, podemos desvelar caminhos de maior compreensão e de cuidado consigo — permitindo, quem sabe, que o vazio se torne espaço de criação e de vida.

Que essa reflexão inspire a busca por sentido e por acolhimento, tanto no setting psicanalítico quanto na travessia cotidiana de cada existência.

 

Fontes bibliográficas

·      Freud, S. (1926). Inibições, sintomas e angústia. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.

·      Lacan, J. (1959-1960). O Seminário, Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

·      Winnicott, D. W. (1958). A capacidade para estar só. In: O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artmed.

·      Bleichmar, H. (1997). Angústia: da neurose ao trauma. Porto Alegre: Artmed.

·      Roudinesco, E. (1994). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

·      Green, A. (1983). O discurso vivo: a angústia e o pensamento na clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.

·      Bowlby, J. (1980). Attachment and Loss: Vol. 3. Loss, sadness and depression. New York: Basic Books.

·      Ferenczi, S. (1931). O trauma do nascimento. In: Obras Completas.

 

Por Josiane Batista | Psicóloga e Psicanalista – CRP: 06/164615    



 
 
 

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